Escrevo em português e inglês entre Berlim, Lisboa e Campinas.

Iracema Dulley. 2020. ‘Descarrilho’. In: Parem as máquinas! Poesia. Paraty: Selo Off Flip.

 

calma
tomarei o próximo trem
depois dele ainda há outro

mas e se os trens se acabam?

alarmistas, pensava eu
tenho tudo que quero
um amor e um amante
hoje feijão com arroz
amanhã filé mignon

ainda há trens
é fato

o que não há são trilhos

todos os trens
condutores do desejo
descarrilhados

você se foi
eu perdi a hora

é tarde

(para Aramis)

Iracema Dulley. 2022. ‘Senão’. In: Prêmio Off Flip de Literatura (Conto). Paraty: Selo Off Flip.



Sob a barba negra e rubra ressoa o riso fácil em rouquidão de ressaca. Desejo seus lábios em baforadas como a mãe embala a cria. Não falamos língua alguma, mas seus olhos me espetam.

Um cigarro após o outro agoniamos indecisão.

Decido partir. Ele aquiesce ao meu desejo. Nossos corpos se engalfinham em meio ao suor dos outros. Roubo-lhe um beijo com vagar. Ele enlaça minha cintura. Mesmo ritmo, outros passos. No abraço exploratório somos outros. Mas nossas línguas não se tocam. Roçar de lábios com gosto de gim, cada qual com sua língua. Monólogos ininteligíveis entre coxas sobrepostas. Beijar sem língua, dizer o que não se pode, esperar o que não chega. Pontas de lança não fomos, mas qualquer coisa rombuda atirada por alguém sem mira.

Seus cabelos grisalhos amarrados em coque já não verei soltos sobre as costas nuas. O barulho do salto das botas mal anunciou minha partida macia.

In press.



Era uma tarde de outono daquelas em que o céu fica cor de rosa. Todos na plataforma do trem admiravam o pôr do sol cuja beleza quase fazia esquecer a inflação. O trem estava atrasado, algo que se tornou rotineiro na vida de quem se vale do transporte público berlinense.

Na plataforma, uma bela jovem distraída ouvia música com grandes fones de ouvido brancos. Trajava uma saia comprida azul, blusas em tons de bege sobrepostas e diversos brincos, colares e pulseiras. Um lenço azul estampado envolvia suas tranças.

O trem chegou, abriu as portas e emitiu o sinal de alerta para que os passageiros embarcassem. A moça preparava-se para entrar no vagão quando foi surpreendida por uma passageira recém-saída do trem. “Você parece uma judia”, a velha disse em voz baixa enquanto lhe dirigia um olhar de desprezo.

A moça, que parecia habitar o agradável mundo dos seus pensamentos, subitamente colidiu com a miséria humana. Com o semblante transformado, adentrou o trem que a levaria ao seu destino.

A moça era negra. A velha era branca e ressentida.

In press.



Vestido branco à noite, colar de contas azuis. Tua camisa entreaberta. O roçar intermitente dos nossos cabelos desgrenhados. Mãos quentes, resolutas, guiadas pelo acaso. Algum luar, talvez. Insensatez. Eis que entre nós e o inevitável se interpõe um zíper. O vestido branco pousa sobre o zíper, tenta ser discreto. A plenitude em movimento: deslocamentos, desloucamentos, tresloucamentos. Na suspensão do tempo, a contingência enrosca-se com a necessidade.

In press.

 

nem todo tecido
perde o vinco
ao ser passado

conduzir o ferro

que arde em brasa
é dobrar-se à trama

geometria convidativa

em desalinho contido
sobre o objeto arcaico

no calor do exercício

o olhar penetrante
ultrapassa a fazenda

não há impecável possível
nos devaneios

da moça que passa

(para tia Beth, que gosta de passar roupa)